Expansão de supermercados financeiros expõe conflitos

13 de março de 2019 | Imprensa

Imagem - Fiduc

Os supermercados de investimentos se expandem de forma acelerada no Brasil impulsionados pela ideia de que, por ofertar produtos financeiros de fornecedores variados, atuariam de forma independente para atender os interesses do cliente. É um argumento forte diante da noção de que no tradicional modelo bancário o gerente é comprometido com metas internas de venda e tende a oferecer aos investidores as opções mais rentáveis para o banco.

Mas, conforme essas plataformas ganham escala, cresce também a discussão sobre o quanto de fato elas se diferenciam dos bancos no quesito independência – ao mesmo tempo em que surgem concorrentes que se posicionam como opositores ao modelo.

O principal questionamento que se faz é quanto ao potencial conflito de interesses criado pela forma como os supermercados são remunerados, o que se aplica também aos chamados agentes autônomos de investimento – as pessoas ou empresas terceirizadas que compõem a força de vendas das plataformas e atuam no corpo a corpo com os investidores.

Como regra, quem remunera a plataforma ou corretora é a instituição que origina o produto vendido e não o investidor que o compra. Um gestor de recursos, por exemplo, paga uma comissão à corretora quando alguém aplica dinheiro em seu fundo. Um percentual da taxa de administração do fundo vai para a plataforma que a vendeu, é o chamado rebate, no jargão do mercado. Os agentes autônomos de investimento ficam com uma parte dessa comissão. Em alguns casos, chegam a ficar com metade dela. Os rebates não são todos iguais e variam de tamanho, de produto para produto. Com isso, varia também a receita da corretora e do agente autônomo, de acordo com o produto.

Para os críticos, a simples existência do pagamento de comissões sobre as vendas faz com que o modelo seja alinhado à indústria de produtos financeiros.

Nos Estados Unidos, que estão anos luz à frente do Brasil em educação financeira e onde essa discussão já é mais antiga, o modelo de consultoria, em que a remuneração é paga diretamente pelo cliente, tem crescido mesmo entre clientes de varejo.

Os “Registered Independent Advisor” (RIA), que equivalem a um planejador ou consultor financeiro independente, já superam em número os chamados “broker dealers”, cujo papel se assemelha mais ao agente autônomo de investimento (AAI) brasileiro. O número de escritórios de RIAs tem crescido ano a ano e chegou a 12,5 mil no ano passado; os ativos sob gestão desses consultores saltou 16,7%, para US$ 82,5 trilhões. Enquanto isso, os escritórios de broker dealers encolheram, saindo de 4,3 mil em 2012 para 3,7 mil no ano passado.

“O que defendemos é que o cliente sempre seja colocado em primeiro lugar. E o mais importante é que o profissional de investimentos seja transparente quando inicia um relacionamento sobre como ele será remunerado, se pela comissão dos produtos que vende ou por um percentual pago pelo cliente”, diz Ricardo Nardini, diretor-executivo do CFA Society Brazil. O CFA é uma associação global de profissionais de investimento, responsável pela certificação CFA (Chatered Financial Analyst), uma das mais reconhecidas do mundo.

No ano passado, a XP Investimentos, corretora líder entre as plataformas de investimentos, veiculou por alguns meses uma campanha com os seguintes dizeres: “Assessoria sem custo. Na XP, você conta com a melhor assessoria do Brasil e não paga nada por isso”.

A peça publicitária recebeu críticas por supostamente induzir o cliente a acreditar que não estaria pagando pelo serviço prestado, quando, de fato, a remuneração da corretora está embutida nas taxas de administração de fundos e em outras comissões que saem do bolso do investidor indiretamente.

Hoje a campanha já não está no ar, mas a XP continua a defender sua legitimidade. “O cliente não me paga mesmo, quem me paga é quem origina o produto. Claro que tenho receita e lucro, mas minha assessoria é sem custo para o cliente”, diz Gabriel Leal, sócio da XP. Quanto ao AAI, Leal completa que o profissional não presta consultoria. “Ele faz a distribuição. O que ele repassa aos clientes é sempre recomendação da corretora e, com base no perfil do cliente, oferece as melhores alternativas.”

Leal argumenta que o modelo de remuneração da XP é o que vigora no Brasil. “As instituições todas vivem de rebates, quer seja um banco, quer seja uma corretora. O modelo é igual para todos e o que faz a diferença é a ética, o importante é atender bem o cliente”, diz.

Segundo ele, a XP tem ciência do potencial conflito de interesses, mas procura combatê-lo de forma sistemática. “Desde que nascemos, convivemos com ele [suposto conflito] de maneira confortável. Agimos com ética e adotamos processos para mitigar o potencial conflito”, diz. Isso, segundo ele, significa que a corretora não recomenda um produto ruim que pague comissão maior. “Nós nos colocamos ao lado do cliente porque sabemos que é nosso ativo de longo prazo, muito mais do que a remuneração de curto prazo”, completa.

O BTG Pactual, em sua plataforma de investimentos BTG Pactual Digital, atua sob o mesmo modelo de rebate e comissões e, desde o ano passado, passou a montar uma rede de agentes autônomos de investimento. Marcelo Flora, sócio responsável pelo negócio, diz que o conflito de interesses não é diferente daquele existente no ambiente da agência bancária. Mas acha que o fato de o AAI ser um empreendedor e não um funcionário ajuda a neutralizá-lo.

“Na medida em que o agente autônomo quer se estabelecer com um novo negócio, ele naturalmente tem um incentivo grande para fazer as coisas da forma correta, porque não se constrói um negócio em curto prazo. Em que pese o fato de que há uma questão de conflito, ela naturalmente se resolve no tempo. Um profissional que venda só o que é bom para ele e não para o cliente, com o tempo o negócio dele morre”, diz Flora.

Marcelo Maisonnave fundou a XP Investimentos ao lado do atual CEO Guilherme Benchimol, mas em 2014 saiu de lá e hoje se tornou um crítico da plataforma que ajudou a erguer. “É um modelo muito disseminado no mundo inteiro, que faz sentido para muitos investidores, mas que tem conflito. Nele, eu estou sempre vendendo, tem o produto do mês. A XP é uma máquina de vender produtos”, diz. “Esse modelo, do qual fizemos parte, foi importante, mas na minha visão ele precisa evoluir.”

As críticas não vêm por acaso. Ao lado de Tito Gusmão e Eduardo Glitz, também egressos da XP, Maisonnave é sócio da fintech Warren, uma plataforma de investimentos on-line remunerada exclusivamente por meio de uma comissão fixa de 0,5% ao ano sobre o patrimônio gerido – o rebate pago por gestores de fundos e a parcela da comissão oferecida pelos emissores de títulos são revertidos para os próprios clientes.

A Warren acaba de lançar um serviço para que planejadores de investimento se pluguem à sua plataforma e possam montar carteiras e recomendar aplicações. No próprio aplicativo, o assessor estipula qual a taxa que cobrará do cliente para gerir a carteira e o sistema se encarrega de fazer isso. “”Queremos fazer pelos consultores de investimento o que a XP fez pelos agentes autônomos”, diz Tito Gusmão, CEO do Warren. “Nosso modelo resolve o problema do conflito de interesse.”

Outra casa que acredita no modelo de remuneração por um percentual fixo sobre o patrimônio é a Fiduc, uma plataforma para planejadores financeiros que começou a operar no ano passado. O nome Fiduc vem do conceito de dever fiduciário com o cliente, segundo o qual o profissional deve atender exclusivamente os interesses do investidor e de mais ninguém. Os assessores têm cotas da sociedade, prospectam os próprios clientes e têm acesso a um software para fazer o planejamento financeiro.

“O único modo de fazer crescer o dinheiro que recebo é aumentando o patrimônio sob gestão. Isso quase não existe no Brasil hoje, só para quem é extremamente rico”, diz Pedro Guimarães, CEO da Fiduc. “Acreditamos que o mercado brasileiro já está suficientemente maduro para um modelo como esse. O modelo transacional [baseado em comissões] vai acabar? Claro que não.”

O que esses novos participantes estão propondo é um modelo que conversa mais com o universo da gestão de fortunas, em que já predomina esse tipo de remuneração do profissional de investimentos.

Marcelo Poppof, presidente da associação de agentes autônomos, acredita que o modelo brasileiro pode caminhar na mesma direção do americano, dos RIAs, que equivalem a um planejador ou consultor financeiro independente. “Lá os assessores de investimento não são meros distribuidores, há uma cobrança de uma taxa pela administração do patrimônio. Acredito que, teoricamente, o mercado americano como é hoje é melhor para o investidor”, diz. Mas ele considera difícil uma mudança tão radical em pouco tempo no Brasil. “Hoje ainda precisamos amadurecer o modelo que existe.”

Fonte: Vanessa Adachi, Adriana Cotias e Nathália Larghi

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